Aracaju/Se,

domingo, 13 de junho de 2010

O Profeta Balaão e o Jumento nosso Irmão

O profeta Balaão, o prefeito Edvaldo
e o jumento nosso irmão



Certo jornalista estúpido afirmou que um texto não presta quando obriga o leitor a consultar um dicionário. Tudo bem. Às vezes é preciso concordar com a estupidez. Dicionários também contêm disparates. A maioria deles, senão todos, dão à palavra “jumento” o significado de “indivíduo sem inteligência”. Que injustiça. O jumento é um animal santo. Montado num jumento, Cristo entrou na cidade de Jerusalém. Um jumento, ou melhor, uma jumenta salvou a vida do profeta Balaão. O episódio, como de costume, está na bíblia. No livro dos números. Capítulo 22. A história passa pelo pavor do povo moabita, governado por um poltrão, Balaque, filho de Zipor (os nomes bíblicos são escatológicos). Diz o quarto livro do pentateuco que Balaque, tendo conhecimento da fragorosa derrota que os judeus haviam imposto aos amorreus, resolveu contratar o profeta Balaão para amaldiçoar Israel.

Balaão, após uma inicial recalcitrância, aceitou a proposta, montou na jumenta e encaminhou-se ao acampamento judaico para fazer a bruxaria. No caminho, contudo, um anjo, de espada em punho, surgiu para matá-lo. Esse anjo houvera sido enviado pela divindade, que jamais admitiria que seu povo sucumbisse diante de uma nação apóstata. Sucede que Balaão não pôde ver o anjo. Mas a jumenta viu. Até nisso os jumentos são melhores do que os homens: enxergam mais. Daí, como a jumenta parou assustada, Balaão começou a espancá-la. Conseqüentemente, e diante de tamanha injustiça com a jeguinha, Deus fez como que ela falasse. Falou. E falou para repreender Balaão. Nisso também os jumentos são melhores do que os homens: na capacidade de dar conselhos. Balaão, incrivelmente, foi persuadido pela jumenta a não seguir; do contrário, morreria nas mãos do anjo.

Ora, na bíblia uma jumenta persuadiu um profeta. Como seria bom se a jumenta de Balaão ainda estivesse viva para dar aula de direito eleitoral a alguns políticos sergipanos. Não bastou o artigo da semana passada. E-mails, recados e telefonemas empaturraram a paciência deste sofrido articulista: um jumento. “Você está errado. Edvaldo, no primeiro mandato, substituiu Déda. Logo, ele não pode ser candidato em outubro”. Santa jumentalidade, como escrevera Otto Lara Resende, em 6 de abril de 1992, para a Folha de São Paulo. Obrigaram-me a retomar o tema. Obrigaram-me, ademais, a pesquisar a vida do Pe. Antônio Vieira. Não a do português, mas a do cearense. Aquele que nasceu em Várzea Alegre (Cariri). O sacerdote foi um dos maiores defensores do jumento. Pugnava pelo fim da sua matança, diante da sacralidade do animalzinho. Sua obra principal é “O jumento nosso irmão”, de 1964.

Mas o padre não parou por aí. Fundou o clube mundial dos jumentos. Para adquirir a carteirinha de sócio, explica Otto, o indivíduo deveria “reconhecer a própria burrice”. A evolução seria natural. Admitido na confraria, o novo associado faria um juramento: “até ontem fui burro; a partir de hoje, sou jumento”. O ianque William Teasdale chegou a traduzir a obra do padre para o inglês: “The donkey, our brother”. Mas para assimilar que Edvaldo pode ser candidato, não será necessário ler nenhum texto em inglês. Basta saber português, ainda que sem dicionário. Afinal de contas, não é preciso exigir tanto. O título não é de doutor, mas de jumento. Mãos à obra. Imagine o leitor que está no ano de 2002. Não faz muito tempo. 10 de setembro. Sala das sessões do TSE. Ali estão Nelson Jobim, Sepúlveda Pertence, Ellen Gracie, Sálvio de Figueiredo, Barros Monteiro, Luiz Carlos Madeira e Caputo Bastos.
Burro, resultado do cruzamento de uma égua mais um jumento.

Em julgamento: recurso especial eleitoral nº 19.939/SP (caso “Geraldo Alckmin”). As coligações “São Paulo quer mudanças” e “resolve São Paulo” pretextavam “que o Sr. Geraldo Alckmin é inelegível para um terceiro mandato, a teor do art. 14, § 5º, da CF, uma vez que foi eleito por duas vezes consecutivas vice-governador de São Paulo, tendo substituído o titular do executivo no primeiro mandato e, por fim, o sucedido no segundo, em virtude de seu falecimento”. Situação idêntica à de Edvaldo, salvo por duas arestas. Em primeiro lugar, Edvaldo foi eleito duas vezes vice-prefeito, e não vice-governador; em segundo, Edvaldo sucedeu Déda, no segundo mandato, não porque este tenha morrido, mas porque renunciou para ser governador, isto é, está mais vivo do que nunca. No mais, é tudo igual: substituição no primeiro mandato e sucessão no segundo. Assim, o que decidiu, por unanimidade, o TSE?

A corte, sem qualquer reticência, definiu que “havendo o vice – reeleito ou não – sucedido o titular, poderá se candidatar à reeleição, como titular, por um único mandato subseqüente (Res./TSE nº 21.026)”. Além disso, a relatora, ministra Ellen Gracie, atual presidenta do STF, destacou que “conforme ressaltado pelo eminente ministro Sepúlveda Pertence, na consulta nº 689, o preceito insculpido no art. 14, § 5º, da CF é de redação infeliz quando trata de quem ‘houver sucedido ou substituído, no curso do mandato’ o titular do executivo”. “Naquela oportunidade”, prossegue a relatora, “ficou estabelecido que o instituto da reeleição não pode ser negado a quem só precariamente tenha substituído o titular no curso do mandato, pois o vice não exerce o governo em sua plenitude. A reeleição deve ser interpretada strictu sensu, significando eleição para o mesmo cargo”.

“O exercício da titularidade do cargo, por sua vez”, arremata a ministra, “somente se dá mediante eleição ou, ainda, por sucessão. O importante é que este seja o seu primeiro mandato como titular, como de fato o é, no caso do Sr. Geraldo Alckmin. Conforme destacado pelo ministro Fernando Neves, ‘o fato de estar em seu segundo mandato de vice é irrelevante, pois sua reeleição se deu como tal, isto é, ao cargo de vice’ (CTA 689)”. Alguém ainda vai questionar? Edvaldo, assim como Alckmin, foi duas vezes eleito vice, substituiu o titular no primeiro mandato e o sucedeu no segundo. Edvaldo, assim como Alckmin, pode ser candidato ao cargo principal, pois, só agora, está exercendo esse cargo em sua plenitude. No mais, é pura jumentalidade, ou melhor, burrice. Não é lícito, numa situação de brutal clareza acadêmica, ofender o jumento. O jumento e sábio. O jumento já percebeu que Edvaldo pode ser candidato.

Não se sabe, por outro lado, o que falar do burro, espírito menos evoluído, espécie ancestral, estado arquetípico outorgado àqueles que ainda não fizeram o juramento dos sócios honorários do clube internacional do jumento. Superado o imbróglio, ficam todos os que achavam que Edvaldo não podia ser candidato convidados a se associarem com rapidez. Não é necessário saber inglês e, tampouco, latim, língua em que vai impresso o certificado. O clube já tem até hino. Letra e música de Luiz Gonzaga: “é verdade, meu senhor/ essa história do sertão/ padre Vieira falou/que o jumento é nosso irmão/ a vida desse animal/ padre Vieira escreveu/ mas na pia batismal/ ninguém sabe o nome seu/ bagre, bó, rodó ou jegue/ baba, ureche ou oropeu/ andaluz ou marca-hora/ breguedé ou azulão/ alicate de embaú/ inspetor de quarteirão/ tudo isso, minha gente/ é o jumento nosso irmão”.

* Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo e segunda-feira, 10 e 11 de fevereiro de 2008, Caderno B. pág. 9.


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